A desigualdade urbana sob a lente dos microclimas
Foto da desigualdade no Brasil, por unequalscenes
O tecido urbano, em sua complexidade, revela-se como um poderoso agente modelador de desigualdades sociais. Os processos de gentrificação, que expulsam as populações menos favorecidas de seus territórios, e a falta de oportunidades para esses grupos marginalizados são exemplos claros dessa dinâmica. No entanto, a análise do espaço urbano como produtor de desigualdades se aprofunda quando se considera o desconforto microclimático, uma dimensão ainda pouco estudada, mas que impacta significativamente a qualidade de vida dos grupos mais vulneráveis de perto. Essa subárea do conhecimento é estudada pela Climatologia Urbana, que se dedica à análise dos aspectos climatológicos e seu desdobramento no espaço urbano. Esse campo também é complementado pelos estudos da Arquitetura e Urbanismo, que, por sua vez, planeja a construção do espaço e visa a efetividade de suas ações.
A urbanização desordenada, marcada pela falta de planejamento e pela expansão de construções inadequadas modifica os microclimas, à medida que é capaz de produzir condições adversas através da temperatura e umidade desequilibrada, além da má qualidade de saneamento. Essa situação agrava-se com as mudanças climáticas, que intensificam eventos extremos como ondas de calor, frio intenso e eventos hidrometeorológicos, a exemplo das chuvas extremas mais comuns no Brasil. Por outro lado, traz condições para a disseminação de doenças ou a possibilidade de vetores para elas, como a proliferação da dengue. Somada à precariedade dos serviços ecossistêmicos faz-se, assim, a desigualdade social e climática.
O desconforto pelos microclimas em condições desiguais é um problema persistente que marca a história da habitação no Brasil. Desde os cortiços, com suas prejudiciais condições ambientais, até as favelas de hoje, a moradia de grande parte da população tem sido um ambiente hostil. Caracterizadas por superlotação, infraestruturas precárias e compartimentação excessiva em forma de cubículos de moradia popular, essas comunidades, que se proliferaram em cidades como São Paulo e Rio de Janeiro (XIX-XX), transformam a moradia, direito à qualidade de vida, em um desafio já considerado uma demanda reprimida para qualquer agenda pública. A obra de Aluísio Azevedo, 'O Cortiço', já denunciava essa realidade no século XIX.
A disposição irregular dos cortiços resultava em espaços claustrofóbicos e insalubres. Construídos com materiais de baixa qualidade e pouco resistentes, esses imóveis apresentavam pouca capacidade de regulação térmica, intensificando o calor e a umidade em dias quentes. A ausência de pisos adequados e a presença de lama em superfície agravavam o problema, aumentando a umidade relativa e, consequentemente, a sensação térmica no interior dos cômodos. A variação térmica era ainda mais acentuada durante a noite e em períodos frios, como ocorre nas favelas atuais. Em cidades subtropicais como Curitiba, onde o frio é mais intenso e persistente, esse contraste térmico se torna ainda mais evidente.
A insegurança das condições de vida nas favelas, marcada pela falta de planejamento urbano e infraestrutura básica, impacta diretamente a saúde de seus moradores. A ausência da luz natural, de fluxo de ventos contínuo, a inadequação das instalações hidráulicas, que acarreta aumento de umidade, bem como a falta de um decente saneamento básico, contribui para os surtos de doenças respiratórias e outras enfermidades, agravadas também pela poluição do ar. Como resultado, é vista a alta incidência de problemas respiratórios, como broncopneumonia e alergias, em áreas de baixa renda. As doenças como a malária, febre, enfermidades cardiorespiratórios são todas direta ou indiretamente acarretadas pelo fator climático.
Referências usadas
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